Quem somos nós?
Tudo,
até mesmo o mais pesado, estava
pronto para voar, nada
retinha (Paul Celan)
Muitos são os sinais visíveis e os sintomas aparentes das profundas transformações da composição e localização, das práticas sociais e comportamentos culturais, da população brasileira e espírito-santense.
Observamos famílias menores, com menos filhos, 40 % ou mais são dirigidas por mulheres, sendo cada vez mais comum casais homossexuais e o número e a proporção de pessoas solitárias.
Um total de 5,6% dos nascidos no estado do Espírito Santo, em 2021, foram registrados apenas com o nome da mãe, confirmando os crescentes papéis desempenhados pelas mulheres no sustento e na educação dos filhos, o que se repete em todas as classes sociais.
Movimentos identitários, de toda sorte, feminista, negro, lgbtqia+, de lugares e etnias, reivindicam o resgate das suas memórias e vidas interditadas, disputam maiores visibilidades e participações nos governos, melhores oportunidades na educação, nos empregos e na vida pública.
Mudanças de locais de moradias, desempregos e trabalhos precários tornam-se cada vez mais frequentes e sabemos da tantos, filhos, parentes e amigos, que em crescente diáspora, se lançaram “à busca da segurança e da felicidade em outros estados ou países”.
No espaço virtual, manifestações de todas as origens deixam as suas marcas, de solidariedades e de ódios, de afetos e preconceitos, de aproximações e cancelamentos. No mesmo instante, assustamo-nos com os registros visuais de brutais agressões, contra negros, mulheres, imigrantes, transexuais, e alegramo-nos, emocionados com os gestos de ternura que ligam (des)conhecidos e retomam amizades desfeitas.
O último censo demográfico realizado no Brasil, em 2010, completa 12 anos, uma eternidade para a atualização dos dados dos hábitos e costumes da população, para analisar e prever as suas alterações futuras. Hoje, quem detém e manipulam as informações pessoais e coletivas são as grandes empresas e as telefônicas, que controlam as redes sociais e capturam nossos mínimos gestos, gostos, palavras, deslocamentos e vontades.
Em nome da segurança pública, os aparelhos policiais multiplicaram os seus controles e as cameras de vigilância passam a fazer reconhecimentos faciais, onde todos `a princípio, somos identificados, julgados culpados e condenados.
Seremos os mesmos ou somos outros?
O estado do Espírito Santo, como o resto do país, foi colonizado pela violência, contra os índios, pela escravidão dos negros africanos, ocupado através de degradantes formas de exploração e destruição da natureza e da paisagem. Estas violências seculares, acumuladas de preconceitos, segregações e ódios, imprimiram nos nossos corpos, nas mentes e nos ambientes, “herdeiros de um passado glorioso”, as marcas do sofrimento, que permanecem, até hoje, indeléveis e incuradas.
Somos os frutos destas contradições, que o neoliberalismo reforçou, competitivo e individualista, ao apostar no empreendorismo e na meritocracia, que deixam `as margens, indivíduos, grupos e setores incapazes de participar da disputa econômica, alijados das oportunidades e condenados aos resultados perversos das desigualdades sociais.
Somos as sobras das dores ancestrais, somos os restos dos suores do trabalho extenuante dos escravos e imigrantes, somos os resíduos das lágrimas da submissão das mulheres e da humilhação dos miseráveis e dos negros.
Somos os resultados fragmentados de inúmeros projetos fracassados, somos as partes de sonhos interrompidos, somos os recortes de desejos estiolados pelos donos do poder e do dinheiro, somos esta amalgama comum de identidades e desilusões.
Mas também somos resistências, somos encantados pela vida e pela graça, somos pedaços e somos um todo, somos mulheres e homens, trabalhadores, frágeis crianças e idosos, somos vontade, determinação, potência.
Assim, nos movimentamos “em busca do futuro esperançoso”, que nos exige romper com os avisos da condenação original e somar os “braços fracos” para desfazermos juntos as cadeias das explorações e as algemas do pensamento, superarmos o conforto dos isolamentos e as restrições das ausências.
Quem somos nós?
Kleber Frizzera
fevereiro 2022
https://movnews.com.br/colunistas/2022/02/esg-compreendendo-a-sigla-em-6-pontos/
Foto de capa:
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