quinta-feira, 18 de abril de 2024
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Limiares

Limiares

Já me cansa a rua, mas não, não me cansa – tudo e’ rua na vida.
(Fernando Pessoa)

Quando, nas cidades, as fronteiras físicas e pessoais se tornam indistintas, locais e eventos, onde se misturam partes, órgãos, ruínas, comportamentos, objetos e ambientes e não mais e’ possível discriminar, organizar e definir com distinção cada uma destas coisas, assustamo-nos, inseguros, imprecisos os nossos entendimentos e avaliações.

As cidades contemporâneas, no acirramento dos conflitos e desigualdades sociais e econômicas, nos seus impedimentos e cancelamentos reais e virtuais, atraíram, para os seus interiores, as clivagens da separação e da segregação, as violências contra os fracos, as disputas sem lei, anteriormente (in)contidas no exterior de suas muralhas.

Ártemis, segundo Jean-Pierre Vernant, é a deusa grega do mundo selvagem, das terras incultas e dos jovens ainda não integrados à sociedade, mas também a deusa da fecundidade que faz crescer vegetais e seres humanos.

Ártemis (foto de capa) habita os confins do território, nas zonas costeiras, onde os limites são indefinidos, circula nas fronteiras, “onde o Outro, o selvagem e cultivado se encontram, opondo-se, mas sobretudo, interpenetrando-se”.

Divindade das margens, tem ela o poder de conduzir ao limite da ordem civilizada o desatino do caos, conectar as passagens e as intersecções entre a selvageria e a civilização, mantendo as fronteiras separadas no exato momento que são transpostas.

Em nossa metrópole, o litoral e as praias são lugares limites, o cais e’ um outro, as praças e as ruas, onde tudo é vida, que se dissolvem, usos, formas e dimensões, sentidos e proximidades, com as subidas das marés, os movimentos das políticas, das pessoas, no transcorrer das estações, aos ritmos dos lentos ciclos do tempo.

Em um mundo acelerado, derrubadas as últimas muralhas de Jerico’, em um mundo global onde nada mais existe do lado de fora e as renovadas guerras e catástrofes naturais, os vírus, as muitas identidades, misérias e destruições ambientais estão no meio de nós, o que ainda caberia `a deusa Ártemis?

Os bárbaros, outros em falas e faces, desiguais em frontes, estrangeiros de línguas diferentes, trazem os riscos, revelam as perdas, expõem o proibido, a transgressão, mostram o amor e a morte nos olhos.

Confrontado com um interlocutor, “o rosto humano é uma fonte de inspiração para aquele que fala”, e quando diretamente olhamos no olho de alguém, escreveu Platão, “nos
olhos de alguém que esta’ em face de nós, … como num espelho: aquele que olha vê ali a sua imagem”. Para os gregos, a consciência de si é a apreensão do outro, o indivíduo “se procura e se encontra em outrem”.

Como um labirinto, o mundo/cidade é seccionado por muros e caminhos, onde se movimentam esforços de isolamentos, que segregam os diferentes, limitam as proximidades, erguendo portões e cercas que recortam setores homogêneos, condomínios ou lugares exclusivos. Afastados os olhares dos mais próximos, tenta-se evitar o contato visual com o estranho, outras identidades e outros procedimentos, troca-se o sol da beleza pelo pavor que
cega e ameaça.

Para Dante Alighieri, “A realização do fim do gênero humano coincide com a felicidade, com a atuação da potência”, e necessário, neste processo, que se configure uma multidão, que instrua o múltiplo, some os desiguais, aproxime os opostos, e que multiplique as possibilidades futuras. A felicidade dos homens na terra, escreve, não e’ uma realidade preexistente, imperfeita, mas aquilo que sempre se mostra aqui, “o que apresenta a nós como o mais
deleitoso, a beatitude desta vida.”

“Que seja teu prazer a te guiar”, adverte Virgílio a Dante, no seu ingresso ao Paraiso, agora que a sua inteligência foi restituída à retidão original do teu arbítrio, e “e’ livre a tua vontade e reta e boa”.

Kleber Frizzera
Fevereiro 2022

https://movnews.com.br/colunistas/2022/02/qual-a-relacao-entre-esg-e-ods/

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