sexta-feira, 29 de março de 2024
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Quando a casa queima

Mas Moisés lhe disse:” Tu tens ciúmes de mim? Quem dera que todo o povo do senhor fosse profeta, e que o Senhor pusesse sobre ele seu espírito”.

Números 11

Sêneca, filósofo romano, comentando o incêndio de Roma, no ano 64 DC, afirma que se aos súditos do império fosse possível falar impunemente, todos perceberiam as verdadeiras causas do desastre, ao contrário daqueles que acusam os judeus e cristãos, …para que sejam supliciados como …já de costume”.

Imputando a responsabilidade da catástrofe ao imperador Nero, diz o filósofo: “O culpado, …, que se compraz na carnificina e se refugia na mentira, tem o seu destino fixado: o culpado sera’ cremado pelo fogo por conta de todos.”, e conclui que é intenção de líderes incentivar a violência, mesmo a uso de falsidades: “grandes homens sentem gozo na carnificina e escondem-se na mentira cui voluptas carnificina est e mendacium uelamentum”.

Quando, no Brasil, ultrapassamos a triste marca de 600.000 mortos, causadas pelo Corona Vírus, e o presidente Bolsonaro se exime das suas responsabilidades, observamos que após 2.000 anos, nada mudou, e práticas políticas se repetem como tragédias, e pior, são aceitas por tantas pessoas.

O historiador português Rui Tavares, em Grande Terramoto, livro que descreve o evento natural que atingiu Lisboa em 1755, afirma que nos grandes desastres, diante dos sofrimentos, as pessoas não abdicam de suas convicções, e nas “guerras ideológicas, não há confirmação dos seus preconceitos que deixe, de uma forma ou outra, de ser bem-vinda”.

A maior parte dos testemunhos da época viu no terremoto e incêndio, que destruíram a cidade, a confirmação de suas crenças anteriores, os devotos interpretaram o evento como “uma retribuição divina” aos infiéis e imorais, contestando os cientistas que afirmam que a natureza não faz distinção moral e em Lisboa, “a catástrofe foi capaz de destruir dezenas de igrejas para poupar a rua dos bordéis”.

Infelizmente, a roda do tempo insiste repetir erros e equívocos, e no século XXI, que anuncia graves mudanças climáticas e repetidas pandemias globais, os negacionistas, em nome de Deus ou dos interesses dos lucros das empresas, continuam indiferentes aos riscos ambientais e sanitários e brandindo fake news, mentem e acusam os culpados de sempre, acampando cegos em suas deformadas ideologias.

Se nem os anjos e arcanjos têm a permissão divina para antecipar e adivinhar o futuro, cabe ouvir com prudência os prognósticos da ciência para a nossa frágil moradia terrestre. Esta, após a queda do paraíso, escreve Tavares, “é toda sem repouso, sem firmeza, sem prazer e fausto seguro e permanente, toda fraca, …imperfeita”, e para a sua segurança e continuidade, ao contrário de culpar outros, cabe assumir as reponsabilidades e na guarda da memória dos mortos, revermos convicções e protegermos as gerações futuras de previsíveis sofrimentos.

Tudo o que eu faço não tem sentido se a casa está queimando, e mesmo assim, … é preciso continuar como sempre”, com cuidado e precisão, escreve Giorgio Agamben. Restam a língua, a palavra, as frágeis forças que dela cuidam e se recordam: a filosofia e a poesia,” ainda que a casa queime, ainda que em sua língua que queima os humanos continuam a falar em vão”.

Kleber Frizzera

Outubro 2021

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